segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

SANTA CATARINA, EU E A ÁFRICA


SANTA CATARINA, EU E A ÁFRICA

Criada em Maputo, cantora revela o que há de Moçambique no Brasil: "Somos muito mais africanos do que sabemos".

texto elizah rodrigues
Maputo, capital de Moçambique.
Maputo, capital de Moçambique.
Naquela época o que se sabia da África não ia muito além do Tarzan e da leoa Elza. Não que hoje tenha mudado muito. Mas foi sonhando com leões, elefantes e zebras que desembarquei com a família em Moçambique aos 8 anos de idade. Já no aeroporto um coro improvisado cantava para nos receber. Um puxava o canto e o os demais respondiam abrindo vozes, batendo palmas, dançando, assobiando, dando pequenos gritos de alegria. Naquele instante algo se abriu no meu coração, para sempre. Uma sensação forte de que nada seria como antes. Uma vontade inexplicável de chorar e abraçar aquelas pessoas que eu conhecia de algum antigo lugar.
O cheiro daquela cidade, Maputo, é característico. Uma mistura de castanha-de-caju assada com madeira das belas esculturas expostas nas calçadas e o cheiro do mar, do Índico, que vi pela primeira vez.
Não existe música sem dança para o moçambicano. Por isso é comum ver gente dançando enquanto atravessa a rua. Aqueles rádios no ouvido, o sorriso e o suingue estão por toda parte. Moçambique é a terra da marrabenta e do semba.
Lembro de uma mamana (mulher) que vendia frutas numa imensa cesta equilibrada na cabeça. Capulana (tecido típico) colorida amarrada na cintura, um bebê pendurado às costas. Cantava o que tinha para vender e a criança balançava no ritmo da mãe. Eu corria atrás por quarteirões para escutá-la com aquela voz linda de timbre negro.
Outra cena que guardo é a de um grupo de trabalhadores que arrumava a rua em frente à minha casa. Um socava o chão e puxava o canto. Os outros respondiam às vozes batendo os socadores no ritmo. Eu, emocionada, sentada no meio-fio, com uma vontade secreta de aplaudir.
Maxixe e Maciene são duas praias selvagens onde passávamos as férias. Maxixe tinha muitos coqueiros. Juntávamos um bando de crianças para pegar cocos. Os meninos subiam, as meninas recolhiam e íamos todos pra casa de uma mamana antiga que preparava pãezinhos de coco enquanto nos cantava histórias. Cantava mesmo. Respondíamos com refrões em ronga e changana, duas das 15 línguas de Moçambique, fora os dialetos. Chegam a 80. Criança tem esse mistério de se entender em qualquer língua e em qualquer parte do mundo. Osmicates (pães) assavam no forno de barro no quintal e a cantoria virava dança de roda com um no meio desafiando os demais. A hora de comer era sagrada. Abri-los ainda fumegantes era quase como partir uma hóstia.
Em Maciene, à noite, escutava os tambores incessantes em homenagem e consulta aos antepassados. Esse batuque me acompanha até hoje em sonhos e na alma.
Até os 14 anos vivi na África. Adquiri para sempre valores moçambicanos. Um deles é o da amizade. Lá, ser amigo é um compromisso sério e para toda a vida. Em algumas regiões da África havia um costume de cada amigo plantar uma árvore que simbolizava o outro. As árvores tinham de ser cuidadas como sinal da verdadeira amizade.
Outro valor foi a música, que passou a fazer parte de tudo na minha vida. A essência de todas as coisas. Canções para puxar o pranto, para dançar com o amigo ausente, para encurtar o caminho da saudade, para afastar o medo (o medo da guerra que em Moçambique acabou somente em 1993). Senti de perto o preconceito, as dores, as perdas e as injustiças sofridas pelo povo que lutava pela sua independência real, e a música também tinha esse papel de grito de resistência, de alento, de esperança.
De fato, nunca fui a mesma, ou melhor, aí é que fui eu mesma. Brasileira, de bisavó escrava, de raiz africana como todos nós. Aliás, somos muito mais africanos do que sabemos. Tive certeza disso quando voltei ao Brasil. Estava tudo ali, no samba, no Moçambique, na congada, no candombe, no catumbi.
Passei alguns anos no Rio Grande do Sul e depois fui para Florianópolis, em Santa Catarina. Ali comecei meu caminho profissional na música. Gravei dois CDs independentes em parceria com Guinha Ramires. O primeiro em Porto Alegre e o segundo em Viena, na Áustria. O terceiro, o primeiro solo, foi gravado em São Paulo, teve a direção musical de Daniel Sá e contou com Guello, Thiago do Espírito Santo, Proveta, Yamandú, entre outros. Gravar e viajar com os shows possibilitou-me conhecer músicos e compositores brasileiros incríveis. Uma inesgotável e variada fonte de talentos que brotam por toda parte. E como desconhecemos o nosso país…
Em Florianópolis, por exemplo, existe uma comunidade chamada Mont’Serrat, no centro da cidade, onde 90% são negros e cujo apelido é Morro da Caixa. É que lá foi construída uma caixa-d’água para abastecer a cidade e que não beneficiava os moradores do morro. Por ironia, as mulheres desse morro eram as lavadeiras que cuidavam das roupas do pessoal da cidade. Carregavam a água na cabeça e cantavam lindas canções enquanto lavavam. Essa comunidade, há alguns anos, construiu em sistema de mutirão um centro cultural que se chama Escrava Anastácia.
Em Piçarras, próximo a Florianópolis, ainda existe o catumbi, que vem do tempo dos escravos. No dia seguinte ao Natal, os senhores permitiam uma única folga. Os escravos aproveitavam o que sobrava da festa dos donos e dançavam e cantavam atrás da igreja. Hoje, a festa acontece no dia 26 de dezembro com a coroação do rei e da rainha e a apresentação do catumbi, só que agora dentro da igreja. Depois todos participam de um almoço comunitário.
Ao contrário da imagem loira de olhos azuis que se tem da população de Santa Catarina, o estado tem uma forte mistura cabocla, indígena e negra. O litoral e o sul receberam muitos escravos para a caça à baleia e para o trabalho nas minas de carvão.
São pequenos exemplos dos Brasis que não vemos. Paralelos, anônimos, que pulsam num silencioso e escondido movimento de raízes. É assim que penso a música brasileira. Uma teia de reciclagem que se alimenta dessas preciosas raízes. Não é à toa a iniciativa da rapaziada do choro no Rio e em Brasília, de samba em Florianópolis, de maracatu no Recife, de jongo no interior de São Paulo. Sou, como dizia Mário Lago, “uma cética otimista”. Creio nessa onda que vejo “vir vindo no vento”. Nem todos foram pro shopping ou pra Disneylândia. E diante dessas novas formas de divulgação como o MP3, CDs nas bancas, rádios comunitárias, independentes organizados (ABMI), o músico está buscando novos atalhos para a distribuição do seu trabalho. A democratização desses meios é uma das saídas para a música brasileira.
Há dois anos moro em São Paulo e estou sempre indo a Florianópolis. Tive oportunidade, em 2004, de participar do programa Rumos, que traça um mapa musical do Brasil. Foi um presente. Projetos assim, bem como o do grupo A Barca, de São Paulo, e o Carlos Sandroni, radicado na Paraíba e que refez as viagens de Mário de Andrade gravando e documentando manifestações populares, são alguns exemplos desse olhar para o espelho que o Brasil está fazendo. O próprio cinema nacional esta nessa direção mostrando nossas mil caras.
Também em 2004 fui convidada para me apresentar e participar como representante do Brasil no Festival Sons da Escrita, organizado por artistas e pela Cooperativa de Jornalistas de Moçambique. O tema era “Aids: Como os Artistas Podem Ajudar na Sensibilização e na Quebra de Preconceitos”. Pela primeira vez, eu retornava a Maputo: o cheiro era o mesmo, mas o espírito, outro. O país independente e livre da guerra, e as pessoas muito jovens, cheias de ideias, com poucos recursos e fazendo tudo acontecer. O presidente da Cooperativa dos Jornalistas, Frederico Jamisse, tem 29 anos e fala nove línguas. Muitos jovens falam no mínimo cinco: português, inglês, francês, a língua materna e a paterna. Sabem tudo do Brasil e o adoram. Sabem quem são Clementina de Jesus, Tânia Maria, Guimarães Rosa.
Foi muito emocionante. Gravei no CD de Stewart Sukuma, reencontrei amigos, recebi muitos abraços, beijos, flores. O carinho é moeda corrente. Revi minha casa, que me pareceu menor. De novo os tambores e a dança, desta vez no palco. Quando cantei o Batuque de Pirapora, de Geraldo Filme, todos levantaram e, como na minha primeira chegada a Moçambique, começaram a dançar, abrir vozes, bater palmas, gritar de alegria. Era como estar na casa dos avós.
Quando o Brasil se olhar mais demoradamente no espelho, há de ver a África. A ponte precisa ser feita para nos sabermos mais. A música tem esse dom porque guarda o mesmo mistério das crianças de se fazer entender em qualquer língua e em qualquer parte do mundo. Acredito que a única possibilidade de mudança para o nosso país, para a África, para o planeta, acontecerá por meio da educação e da arte.


ELIZAH RODRIGUES é cantora, atualmente radicada no Rio de Janeiro. Tem três CDs lançados: Como o Diabo GostaBeijo Manga e Elizah. Como produtora, dirigiu e produziu o programa de rádio Lusofalante, premiado no Prêmio Roquette-Pinto da Arpub (Associação de Rádios Públicas do Brasil).

Nenhum comentário:

Postar um comentário